Blog do Vinícius Segalla

Corrupção funciona assim

Vinícius Segalla

Este blog tomou conhecimento nesta semana de um esquema de superfaturamento e fraude em licitação de uma obra viária em uma das 12 cidades-sede da Copa do Mundo de 2014.

Quem contou, com detalhes, dando nomes, valores e procedimentos, é um ex-funcionário de uma das empresas envolvidas. Ele não tem sequer uma prova, as coisas são feitas sem provas, sem emails, sem documentos, sem gravações, via de regra. Tampouco tem este blog qualquer prova.

Mas a história que ele contou se encaixa tão perfeitamente no modus operandi de desvio de dinheiro público no Brasil que será contada mesmo sem que este blog tenha qualquer prova. Porque ela é um case perfeito, é um esquema de corrupção de manual.

Obviamente, não é possível publicar nome algum, nem das empresas, nem das obras, nem da cidade, visto que não há prova. Mas a denúncia já foi encaminhada por este blog às autoridades competentes, para eventual abertura de investigação. Como se sabe, porém, essas coisas demoram. Até lá, adianta-se o que se pode. Espera-se ainda voltar ao tema, com os bois nomeados.

Então, em uma capital brasileira, criou-se o projeto de uma obra de mobilidade urbana, orçado na casa das centenas de milhões de reais. O contrato a ser feito com o poder público é baseado em um edital, que por sua vez é baseado em um estudo de viabilidade. É que a obra, depois de pronta, terá sua operação concedida ao consórcio que a construiu.

No edital e no contrato de concessão, consta que o poder público estadual de uma unidade da Federação irá garantir ao concessionário uma receita mínima orçamentária durante o período de validade do contrato. Essa receita é calculada com base no estudo de viabilidade.

Assim, o contrato diz: ''De acordo com o estudo de viabilidade constante no edital, espera-se que a operação do equipamento resulte em uma receita anual de X. Caso a receita seja inferior a X, o governo estadual bancará parte desta diferença ao concessionário''.

Este é um modelo comum de contrato, não há nada de irregular nos procedimentos narrados até aqui. É comum prever receita baseando-se em estudo de viabilidade. Então, o governo propõe uma licitação com a seguinte lógica: ''Estamos procurando empresas interessadas em construir e operar este equipamento. Para mostrar que vale a pena, eis aqui este estudo de viabilidade que encomendamos de uma consultoria independente. Ele mostra que, caso a empresa siga os parâmetros recomendados e atestáveis, ela terá um lucro de X por ano. Se ela não tiver, quer dizer que algum imprevisto aconteceu, ou que calculamos mal a viabilidade do negócio. Neste caso, nós, governo, nos comprometemos a arcar com parte do valor que faltar para chegar à receita prevista.''

É aí que começam as ilegalidades, tanto no caso em tela quanto em muitos outros em concorrências públicas no Brasil. Neste caso, o governo deste Estado contratou para fazer o estudo de viabilidade que pautou o edital uma consultoria já em conluio com o consórcio previamente designado para vencer a licitação.

Então, a consultoria, a serviço do poder estadual, desenhou um estudo de viabilidade em que prevê uma receita já sabidamente impossível de se alcançar. Por exemplo: suponhamos que a obra seja a de um estádio de futebol. Então, a consultoria prevê que sua taxa de ocupação será equivalente à dos grandes estádios da Europa.

A consultoria faz essa previsão já sabendo que não será atingida. Durante todos os anos de concessão, a cada vez que a meta não for atingida, o consórcio irá, de contrato e pires na mão, reclamar o que tem direito junto ao governo estadual. Deu para entender?

Esta é a primeira forma de corrupção, portanto: a produção de um estudo de viabilidade deliberadamente incorreto, para aumentar a receita do ente privado em detrimento do público.

Segundo conta esta fonte, houve reuniões virtuais envolvendo membros da consultoria contratada pelo governo para fazer o estudo, membros do governo e  membros do consórcio que viria a sagrar-se vencedor da licitação. Os dados e margens que seriam incluídos no estudo eram todos aprovados pelos três vértices da quadrilha.

Nenhuma prova é deixada. Os dados não são enviados por email. As contas e planilhas que são apresentadas e discutidas por todos são exibidas do computrador de quem as fez, em uma tela de projeção. A imagem é transmitida aos outros em tempo real durante as conferences calls, e não fica gravada. Em reuniões onde todos se encontram fisicamente, os dados e documentos são trocados em pen drives, nunca transmitindo nada, nunca deixando rastro.

Bom, a segunda parte do esquema de fraude é a combinação de preços. Os consórcios se formam de maneira amistosa, dividindo obras e participações. Neste caso, a empreiteira que lidera o consórcio que deverá sair vencedor montou as propostas A, B e C, para seu próprio consórcio e para os dois concorrentes. Quem vai vencer a licitação, via de regra, fica com a missão de montar todas as propostas. Todos os concorrentes entram no conluio.

Os funcionários que montam as propostas falsas são advertidos para tomarem alguns cuidados: por exemplo, trocar as fontes tipográficas que serão impressas nos documentos. ''Em uma das propostas use arial, em outra, use verdana'', sabe assim?

Outra advertência: não padronizar nada que o edital não obrigue que seja padronizado. Assim, deve-se prestar a atenção: se não há nada que justifique que a proposta tenha uma ordem única de apresentação de, por exemplo, lista de fornecedores que serão utilizados na obra, não se pode criar um padrão por vontade própria, isso indicaria que todas as propostas teriam sido feitas no mesmo local.

Quer dizer, por exemplo, se em uma proposta a ordem de informação de fornecedores  tem em primeiro lugar o de cimento, em segundo o de fios e cabos, em terceiro o de materiais de acabamento e em quarto de equipamentos de iluminação, esta ordem tem que ser alterada nas outras propostas, porque sempre pode ter um promotor, um funcionário de um tribunal de contas ou um jornalista que vá procurar pelo em ovo, e desconfie que tudo saiu do mesmo escritório, ''ou o que explica terem utilizado exatamente a mesma ordem de fornecedores?''.

Tudo isso é colocado para os funcionários das empresas. Geralmente são técnicos idôneos, que se deparam com esse tipo de procedimento em um dado momento da vida. Alguns deles não aguentam, pedem demissão. A maioria dá continuidade ao processo. E assim a corrupção segue prosperando.

Por isso, quando este blog não coloca o partido ora no poder na prefeitura ou Estado em que se deu alguma fraude licitatória, não é para preservar ou atacar petistas ou tucanos, é porque partidarizar o problema da corrupção é reduzi-lo. Não são só os políticos, somos nós, o Brasil. Ver-se como parte do problema é o primeiro passo para a solução.